quinta-feira, 5 de março de 2009

A Canção Desesperada (Pablo Neruda) Poesia


Aparece tua recordação da noite em que estou.O rio reúne-se ao mar seu lamento obstinado.Abandonado como o impulso das auroras.É a hora de partir, oh abandonado!Sobre meu coração chovem frias corolas.Oh sentina de escombros, feroz cova de náufragos!Em ti se ajuntaram as guerras e os vôos.De ti alcançaram as asas dos pássaros do canto.Tudo que o bebeste, como a distância.Como o mar, como o tempo. Tudo em ti foi naufrágio!Era a alegre hora do assalto e o beijo.A hora do estupor que ardia como um faro.Ansiedade de piloto, fúria de um búzio cegotúrgida embriaguez de amor, Tudo em ti foi naufrágio!Na infância de nevoa minha alma alada e ferida.Descobridor perdido, Tudo em ti foi naufrágio!Tu senti-se a dor e te agarraste ao desejo.Caiu-te uma tristeza, Tudo em ti foi naufrágio!Fiz retroceder a muralha de sombra.Andei mais adiante do desejo e do ato.Oh carne, carne minha, mulher que amei e perdi,e em ti nesta hora úmida, evoco e faço o canto.Como um vaso guardando a infinita ternura,e o infinito olvido te quebrou como a um vaso.Era a negra, negra solidão das ilhas,e ali, mulher do amor, me acolheram os seus braços.Era a sede e a fome, e tu foste à fruta.Era o duelo e as ruínas, e tu foste o milagre.Ah mulher, não sei como pode me conterna terra de tua alma, e na cruz de teus braços!Meu desejo por ti foi o mais terrível e curto,o mais revolto e ébrio, o mais tirante e ávido.Cemitério de beijos,existe fogo em tuas tumbas,e os racimos ainda ardem picotados pelos pássaros.Oh a boca mordida, oh os beijados membros,oh os famintos dentes, oh os corpos traçados.Oh a cópula louca da esperança e esforçoem que nos ajuntamos e nos desesperamos.E a ternura, leve como a água e a farinha.E a palavra apenas começada nos lábios.Esse foi meu destino e nele navegou o meu anseio,e nele caiu meu anseio, Tudo em ti foi naufrágio!Oh imundice dos escombros, que em ti tudo caía,que a dor não exprimia, que ondas não te afogaram.De tombo em tombo inda chamas-te e cantas-tede pé como um marinheiro na proa de um barco.Ainda floris-te em cantos, ainda rompes-te nas correntes.Oh sentina dos escombros, poço aberto e amargo.Pálido búzio cego, desventurado desgraçado,descobridor perdido, Tudo em ti foi naufrágio!É a hora de partir, a dura e fria horaque a noite sujeita a todos seus horários.O cinturão ruidoso do mar da cidade da costa.Surgem frias estrelas, emigram negros pássaros.Abandonado como o impulso das auroras.Somente a sombra tremula se retorce em minhas mãos.Ah mais além de tudo. Ah mais além de tudo.É a hora de partir. Oh abandonado.
Autor: Pablo Neruda -

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